Uma análise anarquista das eleições municipais 2020 em Floripa

Posted on 06/11/2020 by

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A campanha eleitoral para as eleições municipais de 2020 começou oficialmente no início de outubro e o primeiro turno ocorre 15 de novembro. Analisamos aqui o cenário eleitoral em Florianópolis, desde um ponto de vista anarquista, e apresentamos nossa proposta de atuação política, que se dá por fora e em oposição ao Estado.

Quem são as candidaturas em Florianópolis?

O atual prefeito, Gean Loureiro, que largou o MDB em meio ao mandato e agora está no DEM, é o grande favorito em sua coligação com Podemos, PSD, Republicanos e PSC. Além de governar com uma base governista sólida na Câmara de Vereadores, largou na primeira pesquisa de opinião com 44% das intenções de voto. Um político de direita, inimigo do serviço público, alçado ao posto de suposto “moderado” por ter feito medidas mínimas de prevenção contra a pandemia, ainda que tenha cedido rapidamente aos interesses dos patrões pela volta à normalidade. Um suposto defensor da família que foi acusado criminalmente por estupro recentemente, mas que segue blindado pela maioria da Câmara de Vereadores de um necessário afastamento do cargo enquanto caminha a investigação do Ministério Público.

Concorrendo com mais força a um possível segundo turno, está a ex-prefeita Angela Amin (PP, em coligação com PSDB, MDB e PSL), representante de uma das famílias que compõem a tradicional oligarquia na cidade, que levou o atual vice-prefeito de Gean, João Batista Nunes, para sua chapa e tem a seu favor o maior tempo de televisão entre as candidaturas. Em terceiro colocado no início da campanha aparece o candidato Pedrão (PL, em coligação com Cidadania), outro oportunista que tem veiculado a posição de que não é “nem de esquerda nem direita”, acenando para uma composição ampla.

No entanto, o que destaca Florianópolis no cenário nacional dentro da esquerda institucional é a ampla coalização dita “popular”, sob a candidatura de Elson (PSOL), mas que reúne partidos de esquerda e alguns inimigos explícitos da classe trabalhadora. Estão nessa frente o PSOL, PT, PCdoB, PDT, PSB, Rede, UP, assim como as organizações PCLCP e UCB. O PCB, por sua vez, dá apoio crítico à frente. Apesar de estar inspirada na frente que elegeu Sérgio Grando (PPS) prefeito da cidade em 1992 e ter uma cabeça de chapa que se destacou com mais de 20% dos votos válidos em 2016, a coalizão começou a campanha apenas na quarta posição na corrida, com menos de 10% das intenções de voto.

Cabe marcar, desde nosso ponto de vista, que não se trata de uma frente apenas da esquerda, assim como não é uma frente com participação de toda a esquerda. Confundir a esquerda com os partidos eleitorais é um erro tanto histórico, quanto estratégico, que faz perder de vista parcelas significativas do povo que está nas lutas sociais da cidade. Além disso, esconde as perspectivas de maior radicalidade dentro da esquerda que não disputam as eleições – especialmente em um momento histórico no qual precisamos, como condição de sobrevivência, de uma transformação radical da sociedade.

É necessário acompanhar também os rumos das forças bolsonaristas e da extrema-direita em nossa cidade. No pleito atual, em especial após a desistência da candidatura do coronel Araújo Gomes, o campo político ficou desarticulado, gerando ao menos três candidaturas que aparecem com pouca expressividade.

Helio Bairros, ex-presidente da influente Sinduscon, sindicato dos patrões da construção civil, um dos setores mais agressivos e destrutivos do capital em Florianópolis, sai pelo partido Patriota. Alexander Brasil, liderança dos atos de rua da extrema-direita e agitador profissional nas redes sociais, lançou candidatura pelo PRTB, partido do vice-presidente Mourão mesma legenda pela qual se candidatam figuras do integralismo, ideologia fascista brasileira. Os ultraliberais do partido Novo, por sua vez, saem com o professor da UFSC Orlando Silva, na defesa de ampliar a exploração patronal em todos os âmbitos possíveis na cidade.

Por fim, completam a lista de candidaturas o Solidariedade, PSTU e o PCO que, assim como os candidatos da extrema-direita, aparecem com baixa expressão nas pesquisas.

Qual é, então, a posição das anarquistas em Florianópolis?

Como anarquistas votam?

Nós anarquistas votamos. Votamos nas assembleias, nos sindicatos, nos diversos movimentos sociais em que atuamos, entre outros espaços. Nem sempre o consenso é alcançado e o voto se torna um instrumento importante para tomada de decisões. Ou seja, o problema não está no voto como método, mas sim no sistema eleitoral que serve como uma ferramenta de manutenção do Estado.

O período eleitoral representa um pequeno momento no qual entregamos nosso poder de fazer política, de discutir e decidir sobre as questões da cidade, do estado ou país àqueles que se apresentam como políticos profissionais. Permitimos que eles decidam nossas vidas por nós, decidam sobre as creches, os hospitais, as escolas, sobre nossos salários, sobre o preço da nossa comida, nos roubem e nos façam sustentá-los em seus palácios cheios de privilégios concedidos por nós [CABN, “A ilusão do voto”]. É também nesses períodos que a atuação política passa a ser entendida somente como construir campanha, debater sobre candidatos e/ou partidos ou simplesmente votar. Esse tipo de pensamento reduz o fazer político a fazer política eleitoral, substituindo a construção de um povo forte pela criação de falsos heróis e heroínas. Enquanto uns votam com os de cima, nós escolhemos lutar com as de baixo.

Essa lógica representativa é defendida inclusive por muitos setores da esquerda, que também afirmam que com o Estado nas mãos de representantes certos, ou seja, aqueles do seu partido, é possível estimular a construção do poder popular. Mas o poder popular não se constrói a partir de representantes no poder, ao contrário, ele é criado na luta das e dos de baixo. Nossa capacidade de mobilização popular gera uma força social que, se não contida pelos poderes reacionários do Estado, pode causar sérios danos à estrutura de dominação e exploração. São as greves, ocupações, marchas e as revoltas que, ao longo da história, conquistaram mudanças concretas nas nossas vidas.

O Estado seguirá sendo o elemento político-jurídico-militar central do sistema capitalista, servindo para a manutenção da ordem, da dominação de poucos sobre muitos através da coerção e controle, independente de quem esteja no comando parlamentar. Lutamos e construímos um projeto que coloque fim a essa lógica cruel, buscamos criar força social no seio das classes oprimidas para que o poder popular substitua a propriedade privada, o Estado e a alienação cultural pela socialização da propriedade, o autogoverno, o federalismo e uma nova cultura autogestionatária [CAB, “Objetivos Finalistas”]. Nossas inspirações vêm das experiências concretas de revolução e autonomia popular. Palmares, São Domingos, sovietes russos, Manchúria, Barcelona, Sierra Maestra, Chiapas, Rojava nunca dependeram do sistema de representação dos de cima. 

A cada dois anos, muitos dedos e questionamentos são apontados a militantes anarquistas, muitas vezes responsabilizando quem não vota ou vota nulo pelos resultados das eleições e até mesmo nos culpabilizando por problemas que não serão resolvidos porque o candidato X ganhou, ao invés do candidato Y. O que nós questionamos é por que as candidaturas ditas populares acabam sempre abrindo mão das demandas de nossa classe para se eleger e por que cada vez mais o nosso povo se vê descrente de toda a institucionalidade burguesa? Deixamos o convite para ampliarmos as discussões políticas para além das discussões eleitorais e, principalmente, para somar nas lutas sociais e, a partir delas, realizar um debate estratégico sobre a natureza do Estado e sobre como construir poder popular de fato.

Mas não é possível fazer os dois, lutar e também disputar eleições?

É verdade que muitas candidaturas são de militantes comprometidas, companheiras e companheiros com quem compartilhamos diferentes lutas e rebeldias. Em muitos casos, camaradas que estão estimulando e organizando o povo durante todos os períodos fora das eleições.

Não queremos, assim, fazer um debate no plano moral, nem acusar o comprometimento dessas companheiras. O que queremos, no entanto, é debater estrategicamente nossos esforços, buscar a coerência entre meios e fins. 

Como argumentam muitas dessas companheiras, é verdade que o momento eleitoral gera um momento propício para o debate político no conjunto da sociedade, apresentação de propostas, avaliação sobre os rumos da cidade. No entanto, a lógica eleitoral traz em sua essência a negação da política cotidiana, aquela das ruas e dos movimentos, pois transforma a ação política em tarefa no calendário, um calendário controlado pelo Estado. Além disso, as candidaturas recebem o rosto e a palavra dos indivíduos. Por mais que uma candidatura possa propagandear princípios e projetos socialistas ou mesmo revolucionários, essa ação de propaganda não gera acúmulo de força social, apenas visibilidade individual – ou, no máximo, para os partidos políticos.

Acumular força social, criar as condições para o poder popular, exige propaganda e debate de projetos, mas apenas na medida em que isso venha acompanhado de organização popular, referência coletiva em movimentos sociais e ideologias de transformação. Em outras palavras, não existe luta sem ação direta e sem a criação de novas relações sociais. Politização sem organização e luta é idealismo, uma disputa das mentes sem base material que demonstre a possibilidade das mudanças.

Por isso, obviamente é possível lutar e também se candidatar a cada quatro anos, porém isso não fortalece as lutas. São estradas que levam a caminhos diferentes. Nossa proposta é de ação e organização nas nossas próprias estruturas, organizações, movimentos e coletivos das classes oprimidas, os verdadeiros espaços que acumulam experiência e força social para mudar a sociedade.

As candidaturas e mandatos coletivos são uma forma de coletivizar o Estado?

Segundo estudo feito pela Rede de Atuação Política pela Sustentabilidade em 2019, há candidaturas coletivas no país desde 1994, mas a partir de 2016 passaram a ser mais recorrentes e está na região sul a maior quantidade em relação às outras regiões brasileiras. Cada candidatura coletiva terá, no fim, uma pessoa que será parlamentar e outras que serão co-parlamentares. Dessa forma, só há um ator político eleito que ocupa legalmente um assento legislativo e é capaz de votar e decidir nesses espaços.

A democracia burguesa está em descrédito. Nos últimos anos, vemos a queda do número de votantes, diminuição da filiação a partidos políticos, diminuição da confiança nos partidos políticos e na institucionalidade do Estado. Nesse momento, as candidaturas coletivas parecem ser uma possibilidade de “repaginar” as campanhas, os partidos passam a usar o discurso que dessa forma estão criando mais representatividade e democracia, porque ao invés de escolher um candidato, são escolhidas várias pessoas para “dividir o poder”. Essa falsa ideia de criar mais democracia afasta ainda mais uma possibilidade de ruptura e oposição ao sistema vinda das de baixo. Sabemos que, na verdade, o voto estará indo para os partidos, que são os responsáveis por criar a linha política e o programa que definirão os passos dos mandatos, sendo eles coletivos ou não.

Acreditamos sim que a coletividade é essencial no fazer político, mas promovemos coletividade construindo movimentos sociais, ampliando a solidariedade de classe como um princípio no seio das lutas, apontando ao horizonte revolucionário. O fazer político eleitoreiro, por sua vez, não é capaz de fazer revolução: o Estado segue sendo um instrumento de manutenção da dominação capitalista. Chapas coletivas eleitas não mudam em nada a natureza do Estado: o monopólio da força racista e genocida da polícia; a militarização da sociedade; o controle das fronteiras e dos corpos; um sistema judicial herdeiro da escravidão e da garantia de paz para as elites; a defesa da propriedade privada e os supostos projetos de desenvolvimento que só favorecem as elites. Ao acreditar que é possível fiscalizar e disputar essa estrutura por dentro, a esquerda acaba cooptada por sua estrutura e limita seus projetos às mudanças superficiais permitidas pelo sistema de dominação.

É mantido, inclusive, o sistema de representação que silencia a participação popular na tomada de decisão política, deixando-a na mão de um ou vários “políticos profissionais” que estão no poder. Se as candidaturas coletivas apresentassem de fato algum potencial para distribuir o poder político e transformar a natureza do Estado capitalista, será que elas seriam tão facilmente aceitas neste momento de um Estado policial de ajuste?

Construir candidaturas é transformar a realidade?

Em tempos de aumento expressivo do custo de vida e da pobreza, com os preços da cesta básica e tarifas cada vez maiores, além do desemprego massivo, é simbólico ver o Governo Federal aumentar a verba pública destinada ao fundo eleitoral para financiar as campanhas deste ano; o valor passou de 1,8 bilhões de reais para 3,7 bilhões. Enquanto isso, vemos o governo reduzir o auxílio emergencial de 600 para 300 reais alegando preocupações com deficit nas contas públicas.

Dentro deste sistema, o fundo eleitoral é necessário para que as candidaturas menores tenham condições de encarar eleitoralmente os grandes empresários, não há dúvida disso. No entanto, no final, são as de baixo que pagam uma conta milionária a cada dois anos no grande teatro eleitoral. Que tipo de avanço e reforço em nossas lutas poderíamos alcançar colocando esses recursos nas mãos dos movimentos sociais de base? Se concordamos que é a organização popular e a luta que movem a correlação de forças, por que investir tanto tempo e dinheiro nas eleições burguesas e não potencializando nossos movimentos? Enquanto movimentos precisam se esforçar muito para levantar mil reais para alguma ação de base, vemos tanto esforço de arrecadação para campanhas de esquerda que às vezes nem mesmo politizam significativamente o debate público.

Florianópolis e toda nossa região metropolitana vivem problemas sérios para enfrentarmos na busca por vida digna para as classes oprimidas. A violência da Guarda Municipal e PM; a limpeza social racista e a elitização das áreas centrais; os altos preços de aluguel e custo de vida; a privatização de nossos serviços públicos por Organizações Sociais; a destruição ambiental e o turismo predatório causados pelo fortíssimo lobby do capital imobiliário e turístico; o péssimo e caríssimo transporte público; o atropelo e descaracterização de nossa cultura popular, para citarmos apenas alguns exemplos de áreas prioritárias para debate e ação política. São consequências diretas do modelo social de dominação que vivemos, capitalista, racista, colonial e patriarcal. Um modo de construir a sociedade que não se transforma desde cima, apenas com a ação direta do povo oprimido.

Por isso, não votamos nas urnas no dia 15 de novembro e seguimos votando nos espaços de base da luta social todos os dias. Apostamos, ao longo deste ano, dentro dos coletivos e movimentos sociais em que atuamos, em fortalecer a Campanha Nacional de Luta por Vida Digna junto com um conjunto de movimentos e coletivos da cidade, com independência de classe, buscando agitar e reivindicar pelas pautas mais sentidas por nossa classe: renda, emprego, custo de vida, contra a violência às mulheres, contra o racismo, em defesa dos serviços públicos. Buscando acumular forças e criar vínculos que deem exemplo de um povo forte, capaz de resolver por conta própria suas demandas e combater com suas próprias mãos os inimigos que nos atacam. Para enfrentar a ameaça fascista, o ajuste ultraliberal e a repressão do Estado policial em construção, não podemos nos iludir com as urnas dos de cima, só há solução pela luta das de baixo!

CONSTRUA MOVIMENTOS, NÃO CANDIDATOS!

Coletivo Anarquista Bandeira Negra
06 de novembro de 2020

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