Tempos de eleições são momentos em que a militância anarquista é confrontada em seus espaços de atuações no comunitário, estudantil e sindical e nas lutas contra todas as formas de opressões. Somos cobradas por não acreditarmos na via do Estado como maneira de fazer política, tanto para o Legislativo quanto Executivo.
A nossa escolha política é a atuação nas instâncias criadas pela classe trabalhadora, como sindicatos, associações de moradores e entidades estudantis. Não fazemos campanha pelo voto nas eleições burguesas, escolhemos continuar com os nossos pés, mãos, mentes e corações nas lutas populares cotidianas.
Apesar de não disputarmos as eleições, acreditamos como necessário observarmos atentamente o projeto de cidade que está em disputa no ares de cima, dos ricos e poderosos. Afinal de contas, via de regra, no período republicano ao estilo brasileiro, iniciado em 1889, o Executivo e o Legislativo sempre cantaram a melodia indicada pelos setores empresariais organizados.
Ao recortamos o período seguinte à Constituinte de 88, é possível afirmar que os seis ocupantes da cadeira do executivo municipal tocaram ou dançaram de acordo com a batuta da Associação Comercial e Industrial de Joinville (ACIJ) e, dependendo do contexto, ouviram os acordes da Câmara dos Dirigentes Logistas (CDL) e Associação de Pequenas, Micro e Médias Empresas de Joinville (Ajorpeme). Ou seja, projetaram a cidade para atender as demandas da classe empresarial.
O primeiro turno das eleições municipais, realizado em 15 de novembro de 2020, em Joinville, em relação à Câmara de Vereadores, registrou a entrada de três vereadores privatizadores do Novo, dois nomes ligado ao conservadorismo cristão do PSC e outros nomes com histórico de atender as necessidades da classe dominante local.
O partido Patriota levou um nome na eleição, um militante da extrema-direita que exigirá olhares atentos e enfrentamento dos movimentos sociais.
O PDT elegeu um nome ligado ao movimento estudantil universitário sem nenhum histórico de combatividade no campus da UNIVILLE, inclusive se opondo ao conjunto da esquerda com atuação no movimento estudantil. O PT retorna à Câmara com a vereadora Ana Lúcia Martins, histórica militante do movimento negro e feminista da cidade, cuja campanha foi construída para além do PT, envolvendo movimentos sociais e militantes de outros partidos de esquerda.
Ela é a primeira mulher negra na Câmara, o que levou grupos neonazistas a se manifestarem com racismo e ameaças de morte, o que demanda de todas nós uma postura de solidariedade.
Na disputa para a prefeitura, o conjunto da esquerda institucional, que faz a disputa eleitoral e mantém atuação nos movimentos sociais, sindicais e populares recebeu cerca 5% dos votos válidos, mobilizando quase 14 mil votos. Enquanto brancos e nulos somaram 12% dos votantes, cerca de 37 mil eleitores. Já as abstenções chegaram ao número aproximado de 100 mil pessoas, representando 25% dos eleitores da cidade.
Para o segundo turno do poder executivo, a disputa para sentar na cadeira às margens do Rio Cachoeira trouxe dois nomes representando os interesses do empresariado local. Darci de Matos (prefeito – PSD) e Rodrigo Fachini (vice – PSDB) de um lado; e Adriano Silva e Rejane Gambin, prefeito e vice, ambos do Novo. A chapa PSD/PSDB recebeu 25,30% (66.838 votos) e a chapa do Novo, 22,98% (60.728 votos).
Durante a campanha no segundo turno, as duas chapas tentam demonstrar o quanto são diferentes na experiência e na trajetória política. Mas, quando olhamos mais a fundo os seus programas e as suas atuações, podemos visualizar as semelhanças do ex vice-presidente da ACIJ, Adriano; com Darci, sempre financiado pelos empresários da entidade. Por isso, cabe observar algumas questões.
O presente documento pretende identificar o projeto capitalista para Joinville que se encontra nos documentos públicos das três entidades empresariais locais, que qualquer chapa eleita para o Executivo deverá atender, pois, como apontamos, “o sistema capitalista vem articulando em si, junto a seus relevantes aspectos econômicos, aqueles de ordem política-jurídica-militar e de ordem cultural-ideológica.” (Revista 04 da CAB).
As associações de representação dos patrões historicamente buscam influenciar na estrutura social da cidade, no que chamam de “participação comunitária”. São encontrados, desde a década de 1910, registros nas atas das reuniões que falam em preocupações da classe empresarial com desenvolvimento capitalista local, relacionados direta ou indiretamente ao desenvolvimento dos seus negócios, debatendo, entre muitas coisas, representação política e a repressão ao movimento operário.
Inclusive, o embrião das alianças entre associações, que em 1927 fundou a ACIJ, se deu pela formação de uma lista de operários considerados desordeiros, no ano de 1916.
O mesmo ocorreu no contexto da ditadura militar (1964-1985), quando empresas joinvilenses apoiaram o golpe militar de 1964 e foram beneficiadas com injeção de dinheiro público e a repressão ao movimento operário, o que contou com intervenção nos sindicatos, sequestros, torturas e prisões ilegais de opositores aos empresários e militares no poder.
Desde então, todos os ocupantes da Prefeitura de Joinville atenderam as demandas das entidades empresariais. Obras públicas, concessões ilegais no transporte coletivo, reconhecimento de uma falsa dívida com as empresas Gidion e Transtura, a especulação imobiliária e as obras de interesse que trouxeram destruição do meio ambiente.
Mesmo empresariado e governos que governaram para uma cidade em que mulheres, LGBTQIA+, negras e negros tivessem o seu protagonismo histórico apagado, processo que ocorre desde o período da fundação da Colônia Dona Francisca.
O prefeito-patrão Udo Döhler (MDB) pode ser analisado como um exemplo máximo desse longo pacto das associações empresariais com os políticos locais. Antes de ingressar na prefeitura, Udo presidiu a ACIJ nas décadas de 1970 e 1980, voltando ao posto nos anos de 2007 e 2011. Nessas duas últimas participações, sua figura já estava relacionada ao MDB, enquanto antes ele era ligado ao PL (antigo PR).
Em uma relação de troca, Udo foi “apadrinhado” publicamente por Luiz Henrique da Silveira no início dos anos 2000, buscando ser alçado como um representante desse pacto político-empresarial conservador.
O que, como podemos vivenciar, acabou se concretizando. Em 2012, Joinville (SC) já deu sua demonstração do fenômeno conservador da anti-política, em que um grande empresário racista, que ficou milionário com todo o dinheiro que explorou de seus trabalhadores multiplicou sua herança por meio da exploração dos trabalhadores de sua fábrica, se elegeu com o discurso de nunca ter sido candidato, de não depender do Estado, etc.
Desde então, vimos essa tendência ganhar força junto ao crescimento da extrema-direita.
Em diálogo com as esferas política e econômica, a esfera ideológica e cultural se faz presente construindo Joinville como a cidade da “ordem”, da “paz social” e do “trabalho”, expressas por seus monumentos baseados em uma masculinidade opressora e de branquitude.
Por essas questões, denunciar as relações da política local joinvilense passa por desmistificar a narrativa liberal que enaltace o esforço dos grandes empresários em transformar a cidade em um local rico e ordeiro. Também precisamos descontruir o pensamento meritocrático de que o sucesso econômico individual dessas pessoas é resultado da grande dedicação ao trabalho.
O poder e o enriquecimento da classe dominante está diretamente ligado à formação de desigualdades, que são construídas não só na forma direta de acúmulo de capital pela exploração patrão-trabalhador e as heranças milionárias, mas também pela influência e domínio nas esferas culturais, jurídicas, militares e políticas.
Dessa forma, a cidade se torna a materialização da ideologia dominante, construída de forma completamente desigual e com uma narrativa histórica que busca legitimar a exploração.
Na conjuntura recente, a classe empresarial da cidade se colocou ao lado das reformas trabalhista, da previdência e administrativa, além de seu apoio à regulamentação da terceirização, teto de gastos, privatizações e outros ataques contra o bolso e a vida da população.
O Conselho das Entidades, grupo que conta com Ajorpeme, ACIJ, CDL e Associação dos Comerciantes de Material de Construção (Acomac), se apresenta publicamente como espaço para alinhamento dessas pautas com os políticos da região.
Os candidatos a prefeito, Darci de Mattos (PSD) e Adriano Silva (Novo), são figuras que aparecem constantemente em pautas e propostas alinhadas ao setor empresarial e ao bolsonarismo que fica mais fraco a cada dia.
Aliás, essa recepção ao bolsonarismo é recorrente no empresariado local. O “salão nobre” da ACIJ recentemente abriu suas portas para Hamilton Mourão, vice-presidente do governo Bolsonaro e General do Exército, aclamando seu projeto destruidor de direitos que, junto ao presidente, visa ampliar a força de militares e milionários.
Nesse cenário de avanço de reformas anti-povo e diálogo com tudo que representa o bolsonarismo, ACIJ, CDL e AJORPEME, cada qual com seu poder de influência nas estruturas, apresentam em falas e documentos seus projetos políticos para a eleição.
É fundamental situar que essas entidades analisadas não são feitas apenas de grandes empresários, mas também aglutinam os pequenos. Porém, essas instituições também são carregadas pelo imaginário econômico e social, elaborado pelo neoliberalismo. Dessa forma, grandes e pequenos se alinham na propagação do sistema de dominação.
A narrativa do empreendedorismo, que muito seduz os pequenos presentes nesses espaços, funciona como legitimadora da reconfiguração das formas de exploração que o alto escalão empresarial desenvolve historicamente na cidade.
Ou seja, os discursos de desregulação da economia e desburocratização acabam sendo utilizados pela parcela dos grandes empresários como força para avançar nas privatizações dos direitos sociais, facilitando também o desenvolvimento dos grandes empreendimentos e da especulação pelo capital, deixando as demandas do povo e o meio ambiente às margens do debate sobre o desenvolvimento da cidade.
Analisando as diferentes propostas apresentadas pelas entidades, é possível constatar o apelo para que a gestão do Estado esteja mais próximo do modelo empresarial. Essa necessidade se justifica, segundo a lógica dos empresários, por um funcionamento técnico do Estado, “enxugando” a burocracia que atrapalha o progresso dos que buscam empreender na cidade.
A AJorpeme chega a sugerir a necessidade de pessoas ligadas à iniciativa privada para compor a gestão, com o objetivo de que façam a intermediação entre público e privado. Essa linha de pensamento se desenrola ao ponto de abordar a necessidade de facilitar as licenças ambientais para o desenvolvimento econômico local.
A pressão do empresariado em relação a esse tema não é novidade. Há mobilizações públicas e privadas pela Lei do Ordenamento Territorial (LOT), a espetacularização do caso da loja Havan embargada e os constantes ataques à cota 40, que preserva os morros da cidade.
Em relação a proteção ambiental, como a cota 40, a classe dominante tem realizado mobilizações para sua redução e promover a destruição do meio ambiente, que se juntam ao conhecido desenvolvimento urbano predatório ao meio ambiente, elaborado por esses grupos ao longo dos anos.
Em prol do enriquecimento e poder destruíram matas, rios e manguezais por toda a cidade, como a poluição do Rio Cachoeira, a destruição dos mangues e a especulação imobiliária em áreas de preservação ambiental.
Esses históricos conchavos conservadores entre as classes política e empresarial também são reproduzidos no Conselho da Cidade, espaço estruturado para dar uma conotação democrática aos acordos, enraizando o poder — principalmente de ACIJ e CDL — no planejamento urbano da cidade, impedindo que movimentos sociais possam levantar suas propostas sobre habitação, transporte, lazer e demais pautas relacionadas ao direito à cidade.
A problemática narrativa de desenvolvimento econômico construída por esses grupos aponta outras questões que nos chamaram a atenção. A CDL, em sua carta pública aos candidatos à prefeitura, fala da necessidade de tirar das calçadas os vendedores ambulantes. Essa solicitação desmascara o real significado do discurso liberal tão levantado por esses grupos empresariais: liberdade econômica para os mais ricos, intervenção repressiva do Estado para os mais pobres.
Esses sujeitos acusados de atrapalhar o comércio “formal” são mulheres e homens, muitos imigrantes, que estão nas calçadas construindo uma estratégia de sobrevivência perante o cenário do capitalismo neoliberal, que promove a precarização do trabalho e o desemprego em massa.
As experiências semelhantes de intervenção estatal para retirada dos vendedores ambulantes apontam que o Estado utiliza das polícias (Militar e Guarda Municipal) para tratar da questão, reforçando a função histórica dos agentes repressivos, que buscam usar a violência e do disciplinamento nos espaços públicos.
Essa busca pelo controle do espaço público é crucial para que a classe dominante construa seu poder. A mercantilização da cidade passa por assegurar formas de discipliná-la. Dessa forma, como é possível analisar nas falas e documentos, não é necessário apenas tirar os vendedores ambulantes das calçadas, mas também as pessoas em situação de rua.
A construção do discurso da insegurança coloca nesses grupos vulneráveis a culpalização da violência urbana, evocando imaginários racistas e xenófobos, mobilizando políticas higienistas como respostas que se juntam ao policiamento ostensivo, estendendo a repressão também para os demais grupos que se colocam dispostos a ocupar a cidade de forma questionadora à narrativa de uma Joinville ordeira.
Podemos entender que essa forma disciplinadora de organização do espaço público sustenta o desejo dessas entidades de uma área central revitalizada, que expulsa todos aqueles que não podem consumir, definindo quem pode ou não circular pela cidade.
Como já foi mostrado, a direta relação entre classes política e empresarial tem no Estado um elemento fundamental do sistema de dominação. Como processo de legitimação dessa conexão entre políticos e empresários, as eleições são um momento importante para a classe dominante debater publicamente seus projetos.
Logo, as eleições se mostram como parte significativa do processo de reconfiguração do pacto conservador que fundamenta a natureza e funcionamento do Estado. Seja Adriano ou Darci, os dois nomes são representantes dos capitalistas locais.
É por isso que optamos por nos envolver na construção de Poder Popular, através da luta cotidiana nos movimentos sociais, comunitários, sindicais, estudantis e culturais. Frente ao cenário de inserção da lógica privada naquilo que conquistamos com muita luta e organização das de baixo, é necessária, mais do que nunca, a nossa dedicação militante.
Com amor e rebeldia, construirmos um povo forte, ombro a ombro, capaz de resistir à privatização da saúde e educação na esfera municipal, resistir às medidas ditas “moderadas” como a participação público-privada para os nossos espaços de cultura e lazer , e construir a força social necessária para superar essa lógica histórica, de uma Joinville empresarial para uma Joinville das de baixo!
É hora da organização da resistência e defesa dos direitos conquistados!
Construam a luta nos movimentos e organizações com corte de classe, raça e gênero!
Lutar, criar, poder popular!
JONATHAN SARDO
25/11/2020
Excelente análise.