Nota sobre a saída da construção do Estágio Interdisciplinar de Vivência (EIV-SC)

Posted on 24/04/2018 by

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O Estágio Interdisciplinar de Vivência (EIV) é um instrumento de formação política do movimento estudantil e da classe trabalhadora que existe em Santa Catarina desde 2006, assim como em outros Estados do Brasil desde os anos 1990. Essa atividade busca realizar o diálogo entre as lutas do campo e da cidade e fortalecer o horizonte para um outro modelo agrário.

Desde sua primeira edição em Santa Catarina, mais de trezentas pessoas puderam se afetar e, dessa forma, se somar às lutas no campo e nas cidades. O movimento estudantil da UFSC e outros movimentos da cidade se fortalecem em militantes a cada edição do estágio. Hoje, temos ex-estagiários participando de sindicatos, frentes de luta e várias organizações políticas da cidade, pessoas que conheceram de perto a realidade dos movimentos camponeses e suas lutas. Nos últimos anos, a maioria das pessoas que passou pelo EIV participou de lutas sociais como a resistência à EBSERH, as mobilizações e ocupações frente ao corte de verba da educação, as lutas por permanência estudantil e as mobilizações frente à precarização dos serviços públicos. Além disso, o estágio cumpre o papel fundamental de disputar verba e estrutura da universidade para projetos de extensão que sejam úteis e que façam aliança com os movimentos populares, dando visibilidade e força às suas pautas.

O Coletivo Anarquista Bandeira Negra (CABN), por meio desta nota, busca compartilhar um pouco sobre nosso histórico de construção do EIV-SC, a perspectiva do anarquismo especifista na luta camponesa, nossa avaliação da atual situação do estágio em Santa Catarina e nossa saída da Comissão Político-Pedagógica (CPP).

Anarquismo na luta camponesa e no EIV-SC

O campo libertário, onde incluímos toda a militância inspirada pelo anarquismo, pelo autonomismo e demais correntes socialistas anti-estatistas, construiu o EIV-SC desde suas primeiras edições ao lado de diversas organizações políticas, entidades estudantis e militantes independentes. São mais de dez anos de dedicação libertária de diferentes companheiras e companheiros a essa ferramenta de luta junto aos movimentos do campo. O próprio site do EIV-SC está hospedado no portal libertar.org, um projeto de tecnologia para movimentos sociais produzido por militantes libertários.

As lutas camponesas não são estranhas ao anarquismo, muito pelo contrário. Há momentos revolucionários ou insurrecionais do campesinato que ocupam lugar de destaque na história de nossa ideologia, como a Revolução Mexicana de 1910, a Revolução Ucraniana de 1917 a 1921 ou a Revolução na Manchúria de 1929 a 1932. Três exemplos de revoluções camponesas onde a ideologia anarquista exerceu papel hegemônico. Ao contrário de alguns setores da esquerda, que chegam a considerar o campesinato atrasado, inexistente ou mesmo reacionário, o anarquismo sempre considerou que as trabalhadoras e trabalhadores do campo pudessem se constituir em sujeito revolucionário.

Essa interpretação não é apenas um resgate histórico, mas faz parte do cotidiano da atuação política de nossa corrente, o anarquismo especifista, que existe há mais de 20 anos no país e se organiza atualmente na Coordenação Anarquista Brasileira (CAB). É por esse motivo que a CAB atua hoje junto aos movimentos da Via Campesina em várias regiões do país, com militantes acampados, assentados, em assessorias técnicas, principalmente nas bases, mas também em direções do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), além de atuação na Comissão Pastoral da Terra (CPT). Ainda que não fosse de nossa organização, aproveitamos esse panorama para lembrar do companheiro Eduardo Torres, trabalhador, anarquista e acampado do MST em Araquari (SC) até o final do ano passado, quando foi morto em uma situação até hoje inexplicada.

Propostas que contribuímos dentro da CPP

Nesses caminhos junto à Comissão Político-Pedagógica (CPP), o coletivo responsável pela organização anual do estágio, nós do CABN trouxemos e contribuímos com algumas propostas que consideramos importantes para o EIV. Já em 2012, propusemos que o estágio avançasse de um instrumento do movimento estudantil para um instrumento da classe trabalhadora, pensando em formas de acessar e acolher jovens trabalhadores fora das Universidades. Na nossa interpretação, o EIV já foi utilizado como uma forma de terceirizar a formação política que as organizações deveriam promover para sua militância e, ao mesmo tempo, foi tratado como um espaço cujo principal objetivo era recrutar militantes. Nós defendemos o princípio de que o EIV deveria formar novas e novos militantes, então apoiamos a participação de pessoas de diferentes áreas, pessoas novas na militância e o equilíbrio na participação de jovens de organizações políticas, sem privilegiar grupos. Também defendemos o princípio de que só constrói a CPP quem é da Via Campesina ou quem já fez o estágio anteriormente, uma das formas de evitar que grupos tragam muitas pessoas apenas para votar nas decisões mais importantes ou que passem por cima do acúmulo de construção ao longo dos anos.

Além das tarefas cotidianas de construção do estágio, no último período trouxemos propostas específicas. Buscamos avançar na horizontalidade da organização e momento do estágio, incluindo a autogestão como um princípio e como tema de formações da CPP junto ao estudo do Método do Instituto Josué de Castro. Para superar a separação entre a atividade intelectual – excessiva durante o estágio – e a atividade corporal, contribuímos para continuidade das oficinas do Teatro do Oprimido, que se somaram ao debate fundamental sobre o papel da mística. Ajudamos a repensar o espaço da discussão feminista e defendemos a inclusão da discussão étnico-racial, que havia sido secundarizada por muito tempo no estágio. Propusemos avançar no debate sobre América Latina, incluindo um espaço de análise de conjuntura latinoamericana, e buscamos contemplar no debate sobre a questão agrária o acúmulo trazido por outros povos do continente, como as lutas independentes dos zapatistas, dos mapuche, da resistência às megaobras e ao neodesenvolvimentismo.

Contribuímos para a aproximação do EIV com outros movimentos da luta pela terra também negligenciados no espaço universitário e na cidade, o movimento indígena e quilombola. Começamos essa aproximação em 2016, quando tivemos contato com os Kaingang de Abelardo Luz, aldeia que fica a menos de 10 km do assentamento que recebeu o estágio, onde realizamos uma formação sobre a luta por território desse povo, seus conflitos, conquistas e cultura. No ano seguinte, fizemos a aproximação e a vivência com o povo Guarani, em Araquari (SC), próximo ao assentamento do MST, facilitando pontes de solidariedade entre as(os) indígenas e as(os) companheiras(os) acampadas(os)e assentadas(os) na região. Com esses contatos, buscamos ampliar os temas que fazem parte da formação dos estagiários, incluindo outras formas de organização e luta pela terra, fortalecendo estas pautas nos movimentos estudantis e urbanos como parte do avanço para o projeto agrário popular e para a luta antirracista e anticolonial.

Gostaríamos de ressaltar que, mesmo com algumas propostas pensadas na nossa organização, os percursos desse período não são mérito nosso, são resultado de uma construção coletiva entre a CPP, onde a militância independente teve papel fundamental, pois geralmente compunha a maioria das pessoas na construção cotidiana, debates, formações e na divisão das tarefas.

Histórico das relações entre a Via Campesina e a Comissão Político-Pedagógica

Acreditamos que o EIV-SC, e particularmente a CPP, deveria estabelecer uma aliança com os movimentos da Via Campesina e com as juventudes dos movimentos. Um ponto de apoio capz de mandar representação nos espaços de organização e formação dos movimentos, trazer suas demandas para a Universidade e para as lutas da cidade, mas também capaz de unidade na ação para fortalecer as ocupações de terra e demais táticas de pressão dos movimentos nas suas lutas. Porém, na maior parte do tempo, não conseguimos cumprir essa expectativa e vontade.

Nos últimos três anos, a CPP enfrentou muitos obstáculos para garantir a manutenção desse projeto. As universidades federais sofreram um grande ataque com os cortes de verbas, especialmente considerando que os projetos de extensão popular nunca foram uma prioridade. Sendo assim, a tarefa de conseguir recursos dentro e fora da universidade foi se tornando um desafio cada vez maior para toda a construção, o que dificultou ainda mais a articulação com os movimentos camponeses em todo o estado.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) não conseguiu acompanhar a construção do estágio de maneira cotidiana durante os últimos anos, ao contrário do que acontecia anteriormente, assim como a Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB) não esteve presente. Desta forma, a continuidade do estágio dependeu da dedicação de organizações e estudantes que não tinham vínculo direto com a Via Campesina, mas que haviam realizado o estágio e acreditavam na sua proposta.

Essas pessoas fizeram o estágio acontecer durante esses anos através de pressão na Reitoria da UFSC, fazendo formações e reuniões mensais durante todo o ano para pensar as demandas e debates do estágio, buscando recursos em sindicatos, organizando eventos e outras formas de levantar verba para garantir a existência do EIV, ampliar sua divulgação em Santa Catarina e a presença das pautas dos movimentos do campo na Universidade.

Problemas na construção em 2017 e o cancelamento do EIV 2018

Não são recentes os relatos de problemas e desconfortos enfrentados na construção do estágio, tanto por organizadas(os) quanto por independentes. Todos os anos, algumas divergências e disputas se tornam conflitos, ocasionando prolongamento nas discussões e na tomada de decisões. Em nossa avaliação, a construção do EIV é formativa também enquanto um exercício de autocrítica, uma capacidade que faz parte da vivência de qualquer militante, independente de seu espaço de atuação.

No ano de 2017 começamos a CPP com uma maioria de independentes, a Juventude Comunista Avançando (JCA), Coletivo Anarquista Bandeira Negra (CABN) e a Rede Estudantil Classista e Combativa (RECC). Posteriormente, a União da Juventude Comunista (UJC) e a FEAB também participaram. Entre 2016 e 2017, as CPPs identificaram algumas posturas por parte da JCA e UJC que prejudicavam e desgastavam a realização do estágio, decidindo coletivamente pela produção de notas críticas. Como alguns desses problemas foram recorrentes na história do EIV, suas publicações foram avaliadas como um registro importante para o aprendizado coletivo da CPP e para os futuros estágios. 

As notas (aqui e aqui) foram acordadas entre as CPPs inteiras, contemplando a posição de muitas militantes independentes que possuem diferentes perspectivas políticas e que, por isso, não atuam como um grupo próprio. No entanto, consideramos que alguns setores acabaram personalizando ou distorcendo essas críticas que eram coletivas, tratando elas como um instrumento de disputa política e criando uma falsa narrativa de perseguição a sua organização, um suposto “anticomunismo” e, com isso, deslegitimando a construção do EIV 2018.

Após alguns meses com bastante dificuldade no contato com a Via Campesinacom cancelamento de reuniões no interior do Estado e falta de resposta de e-mails, a CPP foi informada em meados de dezembro sobre o cancelamento do estágio na edição janeiro/fevereiro de 2018, mesmo com um ano inteiro de organização e com o financiamento garantido pela universidade. Considerando as demandas urgentes causadas pela desocupação do Acampamento Marcelino Chiarello e o histórico de má comunicação entre Via e CPP, o horizonte apontado foi a construção de um seminário para discutir os horizontes do estágio.

No entanto, os esforços da CPP foram desconsiderados nesse processo. Não recebemos resposta aos e-mails enviados com propostas de datas, convites para reunião e proposta de cronograma do seminário. As possíveis críticas da Via Campesina ao EIV não foram apontadas. Uma reunião para organizar o seminário foi marcada sem conversa prévia com a CPP, onde foram convidadas organizações políticas que não fazem parte da Via nem construíam o estágio, com o fim de construir uma nova CPP.

Consideramos que houve um boicote da Via Campesina à Comissão Político-Pedagógica 2017-2018, que representa um grande desrespeito com as(os) militantes que se dedicaram durante todo esse período por acreditar nos objetivos e nas conquistas do estágio. Neste ano em que a CPT divulgou que as mortes no campo voltaram ao absurdo patamar dos momentos mais sinistros da história recentetorna-se ainda mais crítica a perda de uma edição do EIV e o desrespeito à política de unidade entre diferentes setores da esquerda que caracterizou o EIV-SC em grande parte de sua história, incluindo a última CPP.

Saída do CABN e próximos passos para as lutas no campo e na floresta

Pelos motivos relatados acima é que decidimos pela saída da construção do EIV-SC. Rejeitamos a crítica de que nossas divergências seriam por algum tipo de anticomunismo ou anti-organizacionismo, concepções totalmente contrárias a nossa ideologia anarquista. O anarquismo especifista defende enquanto princípio a organização do povo em seus organismos de luta e, também, da militância anarquista em sua organização política, que no nosso caso é o Coletivo Anarquista Bandeira Negra e a Coordenação Anarquista Brasileira (CAB). Temos horizonte político no ideal comunista formulado pelas lutas de nossa classe, aquele mundo em que todos produzirão quanto podem e todos terão quanto necessitam.

Também ressaltamos que essa saída não está relacionada a alguma divergência fundamental de projeto para a realidade do campo no Brasil e América Latina, frente ao projeto defendido pela Via Campesina. Esperamos, no atual momento, que os movimentos sociais da Via, em particular o MST, MPA, MMC e MAB, avancem cada vez mais em organização, combatividade e conquistas. Dentro de nossas humildes forças, seguimos dispostas e dispostos a somar lado a lado com o povo camponês de Santa Catarina em suas ações de luta pela terra, pela reforma agrária popular, pela agroecologia, contra os transgênicos e agrotóxicos, pela educação no campo, pela liberdade de organização e manifestação, pelo socialismo.

Escrevemos esta nota inspirada na boa tradição da crítica e auto-crítica que esperamos cultivar dentro das organizações da classe trabalhadora, para evitar que o debate político se perca em um pântano de informações desencontradas, boatos ou personalismos. Acreditamos que a avaliação e propostas enunciadas aqui fazem parte da experiência e aprendizado conjunto de lutadoras e lutadores e que sua discussão pode promover avanços para nosso povo. Em particular, esperamos que seja apreciada de forma fraterna pela militância da Via Campesina e pela companheirada que vai seguir organizando o EIV-SC. Da nossa parte, afirmamos que mantemos abertura e interesse em ouvir e discutir qualquer crítica a nossa atuação nesse período, pois sabemos que as contradições fazem parte da trajetória de todas e todos que buscam romper as correntes que nos prendem.

Pela reforma agrária popular!

Pelo fim de todas as cercas!

Coletivo Anarquista Bandeira Negra

Abril de 2018

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