Fala proferida no Ato do Ateneu do Cerro, dia 29 de dezembro de 2012, onde se recebeu os restos mortais de Alberto “Pocho” Mechoso, um dos fundadores da Federação Anarquista Uruguaia, torturado e morto pela ditadura no Uruguai.
“Antes de mais nada, quero dar minha fraternal saudação a todos os que hoje nos acompanham. Queremos também informá-los de algumas coisas e lhes dizer algumas palavras.
Informe da Equipe Argentina de Antropologia:
Diz sobre meu pai: “Tal esqueleto forma parte dos oito que se exumaram arqueologicamente em 19 de outubro de 1989 das sepulturas 73 e 75 do Cemitério Municipal de San Fernando (Província de Buenos Aires) localizado na localidade de Virreyes… Se tratava de exumar as oito pessoas cujos corpos apareceram em 14 de outubro de 1976 no Canal San Fernando recuperados pela Prefeitura Naval e inumados como N.N. no Cemitério Municipal respectivo. Receberam procedentes da República Oriental do Uruguay no marco do projeto Iniciativa Latinoamericana para a Identificação de Desaparecidos (ILID) as amostras de sangue de Beatriz Elizabeth MECHOSO CASTELLONESE, Alberto José MECHOSO CASTELLONESE e Beatriz Inés CASTELLONESE TECHERA, filhos e esposa respectivamente de Alberto Cecilio MECHOSO MENDEZ. As mostras foram enviadas para os laboratórios BODE TECHNOLOGY GROUP (BODE) e EAAF-LIDMO, para analisar marcadores de STR autossômicos. Dessa maneira obteve-se perfis genéticos específicos que, ao ser comparados com o perfil extraído de uma mostra do esqueleto VIR-101 permitiu estabelecer a relação biológica entre estas pessoas.
Baseado nos resultados obtidos do estudo antropológico e das análises genéticas, se conclui que os restos esqueletários estudados, denominados como VIR-101, correspondem a Alberto Cecilio MECHOSO MENDEZ, nascido em 1 de novembro de 1936 no Departamento de Flores da República Oriental do Uruguay, C.I. 956.404-7, desaparecido em 26 de setembro de 1976 segundo consta em CNDP 7109.”
A esta altura da minha vida tenho claro quem era meu pai e o que ele queria. Meu pai se criou nestes bairros, Cerro, La Teja. Neles assistiu e viu as lutas operárias, condições sociais e os brutais espancamentos de trabalhadores. Homem modesto e sensível não permaneceu indiferente frente ao drama da sua gente, dos de baixo. Pronto se incorporou à luta e compartilhou ideais de transformação social e da necessidade da construção de uma ordem baseada em outros valores totalmente distintos. Lutou por estes ideais até o último momento. Sabia pelo que lutava e o inimigo que tinha em frente, era consciente sobre o que significava o combate contra o inimigo dos de baixo. À sua experiencia somou-se do capitalismo a cara descoberta qual largara todo o seu ódio antipovo nesses anos que cobriram de crueldade brutal à toda a sociedade. Aí esteve, como tantos, enfrentando com a sua peleia diária e sua convicção inquebrantável, a besta que tinham largado na arena. E conheceu essa besta por dentro. Foi brutalmente torturado, pôde sentir como torturavam a outros companheiros, como violavam mulheres, tudo o que confirmou claramente qual era a alma do inimigo. Ele escapou de um desses quartéis onde as bestas massacravam impunemente os lutadores. Apenas saiu e pediu um posto de luta na sua organização. A luta para mudar este sistema infame permaneceu tarefa central para ele. Ele disse em sua carta, “Que outro caminho nos resta? Perante tudo isto, como vale a pena viver a vida… Há apenas um caminho, só há uma maneira de viver, sem vergonha: lutando. Ajudando para que a rebeldia se espalhe por toda parte…”
Nesse “toda parte” está presente o seu antiimperialismo e a autodeterminação dos povos. É claro que nada de tropas para o Congo ou para o Haiti.
Há costumes, uma cultura, e hoje intenções políticas também de que esses são momentos de virar a página, de velório individual, de pôr fim a uma situação.
Mas não, a dor não nos nubla fatos que a punho são visíveis a qualquer um que queira ver. Neste sentido, não estamos velando nada, não estamos virando a página nem terminando nada. Estamos aqui acompanhando uma vida e não uma morte. Uma vida de entrega, cheia de esperança por um mundo melhor. Estes ossos queridos estão gritando: Tudo continua, toda a luta realizada, os ideais defendidos, a empreitada de seguir firme sem pensar duas vezes é a única estrada que conduz à verdadeira emancipação. Esta luta pela mudança total tendo como norte uma sociedade justa, livre e solidária, ontem como hoje, merece tudo. Apenas requer ajustar-se às novas condições históricas. Sendo assim, este é um canto à vida e à luta. A uma vida melhor em uma sociedade melhor, que não tenha nada a ver com esta.
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Meu sobrinho Lolo foi claro em coisas fundamentais. Este tem sido um longo período vestido de muita infâmia, de muita proteção para a impunidade. De formas diferentes, às vezes descaradamente e em outros, com sutilezas complexas. Desde a chamada volta à democracia até nossos dias, a impunidade do horror, de uma forma ou de outra, no geral, foi encoberta.
Mas esteve aí a perseverança sensível e tenaz por parte do povo, especialmente a continuidade do trabalho das famílias; sabemos que elas não estavam sozinhas, mas que puderam manter a tocha dos reclamos. Hoje nem os mentirosos e nem aqueles que estavam com medo de acreditar podem negar o recente passado terrível.
Nos importa saber toda a verdade, que as pessoas saibam o que aconteceu, se sensibilizem e tenham consciência do que este sistema tem em suas entranhas. Existem alguns torturadores e assassinos presos, mas esta é apenas uma ponta da verdade. Quanto, quanto para clarear um pouco? Basta de cinismo e politicagem. O que existiu e continuará a existir é o terrorismo sistêmico, onde certamente desempenhou seu papel macabro esse Estado que articula o conjunto da estrutura do poder dominante: o sistema capitalista.
Esse terrorismo de Estado que é mencionado é parte de uma política geral do sistema. Política que opera de forma diferente de acordo com as fases e conjunturas sociais. No marco dessa crueldade assassina que mencionamos está claramente implícito o processo que foi realizado para dar lugar a um modelo: o neoliberalismo. Esse que sofreram e ainda sofrem os povos. Um modelo que vinha e continua vindo para dar mais para os ricos e poderosos e menos, até a terrível miséria, para o mundo dos oprimidos, os de baixo. Então, assim que tomamos em sua devida dimensão a situação macabra vivida não deixa dúvidas da grande quantidade de responsáveis diretos que há a nossa volta.
Hoje está mais do que claro. Não é algo isolado ainda como se dizia ou se insinuou ridiculamente. É o império, é o Plano Condor. Ali está um Kissinger para dirigir, apoiar e coordenar assassinatos, e por momentos massacres. Sim, os organismos de império estiveram presentes ontem como hoje, dando cursos de tortura e morte, apontando aos combatentes e ensinando técnicas de forte repressão e medo para povos inteiros. Para as operações de saturação, grandes e pequenas.
E querem mais do mesmo. Hoje, existem intervenções sangrentas em lugares diferentes, alguns diretamente, como Iraque e Afeganistão, e outras através da OTAN, ao que se tem que adicionar desestabilizações organizadas ou estimuladas e cadeias como lugares para torturar ao redor do mundo.
Os eventos que ocorreram aqui estavam naquele projeto. Para o nosso povo, isso não terminarão de pagar nunca. Não haverá perdão nem esquecimento. Aqui, perdão é sinônimo de cumplicidade e resignação, por isso a melhor e autêntica maneira de lembrar aos nossos companheiros é de continuar a luta, os ideais pelos quais caíram. Seguir sem dúvidas, com a firmeza necessária ao inimigo que enfrentamos. Nada de administrar o sistema o melhor possível aos de cima, para mantê-los felizes e perpetuá-los.
Sim. Eles fizeram seleções, atrocidades, torturas, estupros, morte vil para lutadores ativos. Ali estavam as bestas que podiam instrumentar a política como o sistema predatório e miserável queria. Ali estavam os mecanismos de morte, capazes de qualquer bestialidade possível: dispostos, treinados para isso. Ali estava esse sujeito coletivo deplorável, inútil, covarde, capaz de infâmias inimagináveis, esse sujeito produzido por um sistema dentro de uma instituição e que tem papel e lugar precisos nesta estrutura de dominação baseada na violência.
Todo esse conjunto institucional e de diferentes mecanismos que criou e recriou o sistema desde a sua origem foram direcionados para formar uma espécie de sociedade onde uns poucos, muito poucos, tiveram tudo, e a grande maioria, os de baixo, tiveram nada ou só o que é imprescindível para sobreviver. Mecanismos que constituem toda uma rede de violência, abrangendo o jurídico, cultural, ideológico, econômico. Malha sinistra que garante a sua reprodução.
Mas os povos não eram nem permanecerão passivos e submissos. Cambaleando muitas vezes, igualmente estouram. Um senso de justiça e liberdade alimentam seus sonhos. Nunca matarão a esperança dos povos e dos militantes. O que vem não será fácil de enfrentar, mas o fácil é quase sempre o pior neste campo.
Pocho se entregou inteiro por uma causa de verdadeira justiça, pelo socialismo e pela liberdade, por um mundo novo. E Pocho é de todos aqueles que seguem esse sonho e essa luta. Sabemos, foram muitos, com diferentes matizes ideológicos, que deram total compromisso em busca do que acreditavam, não podemos mencioná-los todos, mas a nós ainda fica o recurso de compreendê-los em nome de alguns lutadores como: Leon Duarte, Gerardo Gatti, Elena Quinteros, Raul Sendic, Hugo Cores, Idílio de Leon, Nuble YIC, Julio Castro o Santa Romero. Na memória e na luta do dia a dia estarão sempre presentes.
Irmão e companheiro Pocho, estarás sempre em meio a nossa luta e nossos sonhos.
Arriba los que luchan.”
Tradução: CABN
Fonte: http://federacionanarquistauruguaya.com.uy/2012/12/28/alberto-pocho-mechoso-palabras-en-el-acto-del-ateneo-del-cerro-previo-a-la-marcha-que-lo-acompanara-al-cementerio-del-cerro/
Veja também: Vídeos do ato de recebimento dos restos mortais de Alberto Pocho Mechoso http://vermelhoenegro.org/blog/2012/12/30/videos-do-ato-de-recebimento-dos-restos-mortais-de-alberto-pocho-mechoso/
Posted on 29/12/2012 by CABN
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